Textos

JOÃO W. NERY
O PRIMEIRO TRANSEXUAL HOMEM OPERADO NO BRASIL

(Por Rose Madeo)
 
Foto: Rose Madeo
João W Nery, transexual, autor do livro “Viagem Solitária”.
                                                                                     
“SOMOS HUMANOS ACIMA DE TUDO”.
(João W. Nery)


     “João W. Nery nasceu em 1950 no Rio de Janeiro, numa família esclarecida que sempre o apoiou e não o impediu de ser o que é hoje.
     Ao perder o diploma de psicólogo, por causa da identidade falsa, trabalhou numa usina de concreto, numa confecção, foi artesão, vendedor, terapeuta corporal, técnico em computador, pedreiro, pintor, professor universitário substituto. Sempre escreveu poesias, algumas delas estão em seu livro Viagem Solitária. Em 1984 publicou seu primeiro livro, Erro de Pessoa: João ou Joana?”
(Texto de apresentação retirado do livro Viagem Solitária).
     
     João mora na cidade de Niterói e, com muita disposição e simpatia, concedeu uma entrevista à estudante Rose Madeo do 4º período de Jornalismo da Universidade Estácio de Sá.

O que é a transexualidade?
A transexualidade é uma questão chamada de “identidade do gênero”. É quando o gênero de uma pessoa não está de acordo com o corpo que ela nasceu.

Com que idade você percebeu que se sentia em um corpo errado?
Aos três, quatro anos de idade eu me sentia um menino, do gênero masculino.
 
Você sofreu transfobia?
Com certeza. Na época, a palavra transexual não existia. Sofri transfobia e ainda sofro. A transfobia causa sérios problemas emocionais. A maioria tem depressão, grande parte tem síndrome do pânico e outras síndromes, decorrentes da transfobia e não da transexualidade.
 
Como sua família aceitou sua condição?
Quando eu disse pra minha mãe que eu ia me operar, ela quase teve um “treco”. A minha família é bastante unida, hoje a aceitação eu diria que é cem por cento.
 
Qual a fase mais difícil de sua jornada?
A fase mais difícil de um transexual é a adolescência, que é quando começam os caracteres sexuais secundários, como os seios e a “monstruação”. O transhomem não vai à praia, não vai à piscina. Ele vive enfaixado para esconder os seios, usa coletes, que podem ocasionar problemas no pulmão. Alguns transhomens são corcundas em função de esconder as mamas. A cirurgia é a solução para que se tenha um grande alívio, podendo-se usar as roupas que quiser.
 
Com quantos anos você começou a fazer uso da testosterona? A testosterona causou problemas de saúde?
Eu tinha vinte e seis anos. Como eu sou o primeiro, eu sou meio cobaia. Não há tempo hábil ainda para dizer exatamente, estatisticamente, sobre as consequências da testosterona em um corpo, no meu caso, que entra na menopausa aos vinte e sete anos. O que se sabe é que a testosterona evita a osteoporose, assim como o estrogênio. A testosterona altera a musculatura do corpo, promove os caracteres sexuais secundários como a barba, a voz mais grossa, os pelos, etc. Mas ela também aumenta o colesterol, aumenta a insônia, dificulta a absorção da insulina, enfim, tem prós e contras, como tudo.

Eu tenho uma artrose sistêmica, que ninguém pode garantir que é da testosterona, mas eu tenho quatro próteses no meu corpo, já sofri um enfarto. Desconfio que pode ser. Mas estou vivo.

Você não pode parar de tomar a testosterona?
Eu já pensei em parar, me consultei com alguns endocrinologistas, mas nenhum deles me aconselha a parar. Eu poderia entrar em um processo de osteoporose, por exemplo. Alteraria todo o metabolismo do meu corpo. Alguns caracteres não retrocedem, como a voz, a barba. Hoje eu tomo uma dosagem mínima, só para manter.
 
Você fez cirurgia de mudança de sexo?
Esse termo “mudança de sexo” é errado, porque ninguém muda de sexo. O gênero que você tem, é a sua identidade. Você pode se identificar como mulher, como homem, como os dois ou como nenhum. Existem também as identidades chamadas “entregêneros”, que são aquelas pessoas que não querem se definir como homem, nem como mulher.
Não fiz a neofaloplastia, que é a “feitura” do pênis, porque na época em que me operei, em 1977, as cirurgias eram consideradas crimes. Hoje, apenas no Brasil e só para transexuais, é considerada experimental. Só pode ser feita em Hospitais Universitários.
 
Você é considerado pela mídia o primeiro “transhomem” operado no Brasil. Que tipo de operação você fez?
No caso dos “transhomens”, a primeira cirurgia que se faz normalmente, é a chamada pela medicina, “mastectomia”, que é um termo errado, porque quem faz mastectomia é uma mulher com câncer. No caso dos transhomens o termo certo é “mamoplastia masculinizadora”. É uma cirurgia reconstrutora, onde a mama feminina é transformada em mama masculina. Inclusive há próteses peitorais para melhorar a estética do corpo.
Além dessa, eu fiz a pan-histerectomia, que é a retirada do útero, dos ovários e das trompas.
 
Onde você se operou?
Operei em São Paulo, em plena época da ditadura militar, onde tudo era proibido. Naquela época, o cirurgião que operasse poderia ser condenado, como o meu foi. Não por minha causa, mas porque ele operou uma “transmulher” em 1971 e foi condenado a dois anos de prisão. O médico que me operou já é falecido.

Atualmente, é mais fácil para um transexual fazer a cirurgia?
Nada fácil. Para começar, é preciso se submeter a dois anos de terapia com uma equipe multidisciplinar e conseguir um laudo psiquiátrico dizendo que você é um transtornado de gênero, e ter a autorização para mexerem no seu corpo. Não temos nenhuma autonomia. O transexual ou travesti, para fazer isso pelo SUS, precisa do laudo psiquiátrico.
Só temos quatro SUS no Brasil que faz esse tipo de cirurgia. No Rio de Janeiro, em São Paulo, em Porto Alegre e em Goiânia. No Rio de Janeiro quem atende é o Hospital Pedro Ernesto, mas as inscrições estão fechadas há mais de um ano, porque as filas estão enormes.

Essa cirurgia pode ser feita em hospitais particulares?
Sim. Quando se tem dinheiro, tudo fica mais fácil. No particular são pouquíssimos cirurgiões que são especializados, porque não é uma única cirurgia.
 
Após a cirurgia, os transexuais podem obter uma nova identidade?
Não é tão fácil assim. É necessário entrar na justiça para conseguir a mudança do nome. Se o juiz não for com a sua cara, mesmo operado, você não consegue mudar o seu nome e o seu gênero na sua certidão. O grande problema dos transgêneros é conseguir uma documentação. Você tem uma aparência masculina com uma documentação feminina. Ou vice-versa.
Aconteceu um caso comigo, que hoje, dou risada quando me lembro. Eu estava dirigindo e fui parado por um policial. Tenho a aparência de homem, mas mostro a documentação de uma mulher. O policial olhou pra minha cara e disse: “Você está brincando comigo? Não pode mostrar a identidade de sua irmã”.
Eu tinha uma documentação feminina, embora minha aparência já fosse masculina. Desde os vinte e dois anos eu vivo dupla identidade social. Cinco anos antes da cirurgia eu já era visto e tratado como homem. No prédio onde eu morava, eu era o marido da minha mulher. Eu estou cometendo, mesmo que sem querer, falsidade ideológica.
 
Como conseguiu uma identidade masculina?
Para mudar meu nome, eu não poderia entrar na justiça. Nenhum juiz iria me dar. Até hoje são transfóbicos, imagine naquela época? Tirei uma nova certidão de nascimento, como se eu nunca tivesse sido registrado. Usei uma roupa de matuto e dei a desculpa que era para me alistar no exército. Paguei uma multa pelo atraso. A história que contei foi de que meu pai nunca tinha me registrado. Foi assim que consegui meu nome masculino, mas com isso, eu perdi todo o meu histórico.
 
Como surgiu o nome João W. Nery?
João, porque eu queria um nome fácil e bem popular. W, de Walter, usei para não ter homônimos. Tem um cantor chamado João Nery. E Nery é sobrenome de uma amiga negra, que eu gosto muito e resolvi homenageá-la. É um nome inventando, é meu nome social. Não é meu nome de registro.
 
Essas mudanças acarretaram problemas em sua vida profissional?
Muitos. Como eu iria trabalhar com uma aparência masculina e toda a documentação feminina?
Eu me tornei um analfabeto. Fiz supletivo do primeiro e do segundo graus (ensino fundamental e ensino médio), mas no segundo grau eu fiquei em uma questão de química e mandei tudo para o inferno.
Como mulher, eu era psicóloga, dava aula como professora em três universidades do Rio de Janeiro, tinha um consultório de psicologia e fazia mestrado. Eu fiquei tão revoltado pelo Estado não me reconhecer, que eu resolvi não fazer tudo de novo.

O que você fez para se sustentar?
Trabalhei como pedreiro, fui pintor de parede, vendedor de uma porção de coisas, chofer de táxi, cortador de confecção, terapeuta corporal, enfim! Fiz de tudo um pouco.
 
E hoje? Como você sobrevive?
Hoje estou desempregado e sem aposentadoria. Depois que publiquei o livro “Viagem Solitária” em 2011, teve uma repercussão muito grande, que eu não imaginava. Obrigatoriamente, eu me tornei um ativista da causa dos direitos humanos. Não só da causa LGBT, mas de todas as minorias discriminadas, sejam elas étnicas ou sexuais. Minha vida é uma loucura. Sou sempre convidado para dar palestra em congressos, em programas de televisão e blogs, sem remuneração, claro.
Meus pais pagam meu plano de saúde, e minha esposa, que é funcionária pública, também me ajuda. E vendo meus livros. Não é grande coisa, mas vou vivendo.
 
Do seu ponto de vista, como os transexuais são vistos pela sociedade?
O “top” nessa sociedade é ser homem, heterossexual, branco, rico e culto. Fora disso, você é inferiorizado. Eu não sou um homem, sou um transhomem. E quero tornar visível esse seguimento da sociedade, lutar pelos direitos que não temos absolutamente nenhum.
A sociedade não está preparada para receber e entender os transexuais. Nós somos invisíveis por essa cultura, somos tabus, abjetos. Não somos considerados cidadãos, não somos considerados nem humanos. Somos considerados doentes mentais, segundo a Associação Psiquiátrica Americana e o DSM5, que foi publicado agora. O DSM5 é o manual de diagnóstico das doenças mentais. Então, somos uma patologia.
A homossexualidade deixou de ser, em 1973, nos Estados Unidos. Em 1990, no Brasil, pelo Conselho Federal de Psicologia. Mas a transexualidade ainda é considerada uma doença mental. Por esse motivo, no ano passado, foi feito o projeto de lei chamado “Lei de Identidade de Gênero”, pelo Deputado Federal Jean Wyllys e a Deputada Erika Kokay, que me homenagearam usando o nome “Lei João W. Nery”. Que, aliás, será o tema da Parada do Orgulho LGBT deste ano em São Paulo.
 
O que diz esse projeto de lei?
Qualquer transexual poderá ir ao cartório e mudar o seu nome e seu gênero, sem necessidade de cirurgia, de “hormonização” e de laudo psiquiátrico.
Essa lei já existe na Argentina e foi aprovada por unanimidade pelo senado, e foi o único país no mundo que “despatologizou” a transexualidade.
Essa é a libertação total dos transexuais. É fundamental que esse projeto de lei seja aprovado. No momento, essa lei está na Comissão dos Direitos Humanos, na Câmara. Ela tem que passar por três comissões. Acredito que não haverá problema, até porque, não está mais o “Infeliciano” lá (referindo-se ao Deputado Marco Feliciano). Depois terá que ir para votação no Congresso e enfrentar a bancada evangélica. Aí é que a coisa pega.


Você acredita que ainda este ano esse projeto de lei poderá ser votado?
Não. É ano eleitoral e Copa do Mundo. Acredito que no ano que vem, talvez.
 
A lei sendo aprovada, você poderá resgatar sua formação como Psicólogo e Professor?
Sim. Primeiro terei que destruir minha segunda certidão de nascimento, e a partir daí, passar meu nome feminino para o masculino e resgatar todo o meu currículo escolar e acadêmico. Hoje já existe uma lei que me dá direito de exercer a Psicologia com meu nome social. Como João W. Nery, eu posso ser psicólogo. Mas nessas alturas da vida, já não tenho mais clientela e nem disposição.
 
Qual é a sua visão do futuro para os transexuais?
Eu sou um cara otimista. É muito importante ter sempre uma energia positiva. Acho que hoje, com a internet, todos já podem obter informações com maior facilidade, podem conhecer outros “trans”. Na minha época não tinha, eu nunca conheci nenhum “trans” até os meus trinta anos de idade.
Acredito que não vamos mais precisar ter a permissão da sociedade para sermos o que a gente é. Precisamos de leis para nos defender e provar que não somos doentes mentais, criminosos, abomináveis. Acho que falar de nós dessa maneira, é justamente para fortalecer a dita normalidade deles.
Aqui no Brasil, os meninos não podem brincar de boneca. Meninas até têm maior amplitude, mas também tem reservas em algumas brincadeiras. É necessário acabar com essa “generificação” em tudo. No banheiro, nas roupas, no modo de agir. Por que homem não pode usar saia? Por que homem não pode se maquiar? Por que o homem não pode ser feminino? Por que homem não pode usar cor de rosa? Por que mulher não pode ser masculina? Que tanta ameaça é essa? Tanta homofobia, transfobia! É um medo, uma insegurança! É uma coisa terrível. Eu acho que a tendência é a sociedade evoluir, questionando esses conceitos tão arcaicos.
 
Você acha que isso deve acontecer a longo ou a curto prazo?
A longo prazo. Eu não vou estar vivo pra ver não. Nem sei você estará. Mas algumas conquistas eu acho que a gente ainda vai assistir.
 
O que você pode dizer sobre as jovens meninas que se sentem meninos?
Em primeiro lugar, eles devem ser tratados como masculinos. O respeito à identidade de gênero é fundamental. Não importa se tem seios, vagina, se não está usando hormônios ainda, mas deve-se respeitar como a pessoa se sente.
Se quiserem, podem me adicionar no Facebook. Procuro orientar, indicar profissionais competentes, que entendem do assunto. Eu tenho uma lista de advogados, psicólogos e médicos de todo Brasil.
 
E sobre os pais dos transexuais? O que você tem a dizer?
Os pais não estão preparados para ouvir que os filhos são homossexuais, quanto mais que são transexuais. A homofobia e a transfobia começam em casa. O segundo cárcere é a escola, que também é homofóbica e transfóbica.
 
Fale um pouco sobre seu livro “Viagem Solitária”.
Viagem Solitária ganhou dois prêmios de literatura. Tem ajudado muita gente, não só transexuais, como também os pais e profissionais.
Um rapaz de quinze anos me pediu ajuda, dizendo que ele não aguentava mais ficar dentro do armário e não sabia como falar com os pais. Eu falei: “dá meu livro pra sua mãe ler”. Um mês depois, ele me procurou e disse que a mãe leu o livro e ficou muito aliviada por ele não ser trans. Ele só era “homo”, só gostava de homem.
O livro já curou alguns homofóbicos, porque a homofobia que é uma doença.


                                                                      Foto: Rose Madeo
 João W. Nery, transexual.

Você está casado? Tem filhos?
Minhas relações afetivas sempre foram profundas e duradouras. Estou no quarto casamento há dezoito anos.
Tenho um filho. Uma de minhas ex-mulheres teve um caso com um homem e desse caso, gerou-se meu filho. Eu perdoei minha esposa, o adotei, exigindo que o pai biológico nunca soubesse da existência dele. Hoje meu filho tem 26 anos, é heterossexual, casado, engenheiro, mora no Rio de Janeiro. Contei a minha história pra ele quando ele tinha treze anos. Meu filho é meu amigo do peito.
 
Quem é João W. Nery?
Sou um transhomem feminista e feminino. Tudo que é considerado feminino na nossa cultura, é o que tem de melhor. Sensibilidade, emoção, carisma, tudo o que sufoca os homens, o que eles não podem transparecer, porque senão, pagam o preço de serem considerados gays. Uma repressão terrível! Eu sou liberto dessa repressão.
Eu sou um homem que não gosta de futebol, um homem que chora, um homem que sabe discutir relações. Sou um homem que já vivi no mundo feminino. Poucos entendem mulheres como eu, embora eu nunca tenha me sentido como mulher.
Passei trinta anos dentro do armário, obrigatoriamente, porque eu era um criminoso, tinha dupla identidade. O que eu quero não é algo mirabolante, nada tão difícil. Eu só quero ser respeitado como eu sou. E respeito, não é um favor prestado, mas sim, uma obrigação de todos para com todos.


                                                                         Fotos: Internet
Montagem: Rose Madeo

                                                               Foto: Marta Coe

João W. Nery e Rose Madeo

Nota:
Essa entrevista foi concedida a título de trabalho acadêmico. Agradeço imensamente a colaboração de João W. Nery e que as pessoas possam encarar essa entrevista como um esclarecimento fundamental para o combate à homofobia e à transfobia.
 
PORQUE O PRECONCEITO É O MAL MAIOR DA SOCIEDADE.
Rose Madeo
Enviado por Rose Madeo em 11/07/2014
Alterado em 11/07/2014
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